Assim como as flores
murcham
E a juventude cede à
velhice,
Também os degraus da
Vida,
a sabedoria e a virtude,
a seu tempo,
florescem e não duram
eternamente.
A cada apelo da vida
deve o coração
estar pronto a
despedir-se e a começar de novo,
para, com coragem e sem
lágrimas se
dar a outras novas
ligações.
Em todo o começo reside
um encanto
que nos protege e ajuda
a viver
serenos transponhamos o
espaço após espaço,
não nos prendendo a
nenhum elo, a um lar;
sermos corrente ou
parada não quer o
espírito do mundo.
mas de degrau em degrau
elevar-nos e aumentar-nos.
Apenas nos habituamos a
um círculo de vida,
íntimos, ameaça-nos o
torpor;
só aquele que está
pronto a partir e parte
se furtará à paralisia
dos hábitos.
Talvez também a hora da
morte
nos lance, jovens, para
novos espaços.
O apelo da Vida nunca
tem fim …
Sus, Coração, despede-te
e cura-te!
Degraus - Hermann Hesse
Pensar sobre o caminho soa como algo bastante
pessoal, talvez um certo tom de pronome possessivo, de algum modo ancorado cá
por aqui, nalgum rincão da nossa intimidade. Carrega uma sonoridade de ninho,
preenchido de nuances de identidade intangíveis por algum outro. O caminho por vezes se apresenta como
uma fatalidade que vem veloz ao nosso encontro, preenchido de mistérios em suas
curvas.
Joan Manuel Serrat pavimentou
um trecho dessa nossa jornada em busca de lago, ou de nós mesmos, ao nos dizer:
“Caminante no hay camino, se
hace camino al andar,
Al andar se hace camino
Y al volver la vista atrás
Se ve la senda que nunca
Se ha de volver a pisar”
Nesses termos o caminhar se mostra mais concreto,
conjugando o permanente vir a ser, vir a tecer do novelo da nossa vida. No caminhar se realiza o mistério do espaço/tempo
como unidade, coexistem a origem e a chegada, o antes e depois, a memória e a
imaginação. Os destinos passam sob nossos pés na mesma velocidade com que
almejamos os horizontes do nosso tempo; pode ser vertiginosa a tomada de
consciência do constante desprender-se e lançar-se nos degraus da vida, pode
ser também refrescante saber-se livre para inspirar-se de novos ares do tempo,
para novos mirantes e desafios de cada lugar a que se chega.
Caminhar é um
ato volitivo ainda que, no andar corriqueiro, o façamos automaticamente, com a
consciência dedicada a outras paragens da nossa alma. Tal como Goethe, que
andava para compor o segundo volume do seu Fausto, acompanhado de redatores
daquilo que as inspirações lhe traziam à fala, o andar pode ser um importante
exercício para desobstruir veias criativas, meditar ou simplesmente respirar
das tarefas cotidianas. No entanto trato aqui o caminhar numa escala diferente da do simples andar.
Conquistar o andar é um dos
preciosos milagres da infância. O esforço dedicado por uma criança para dar os
primeiros passos é digno de alimentar almas adultas para qualquer tarefa que
tenhamos, por mais dura que nos pareça. Lançar uma perna ao futuro e permitir
que ele nos encontre; sustentar uma perna no passado, com todo o peso do corpo
sobre ela, ainda que a consciência já esteja mais entusiasmada pelo adiante;
pensar conscientemente no andar talvez dificultasse muito essa conquista que,
passo a passo vai ganhando mais liberdade e se tornando um gesto que pode ser
realizado com a consciência vigilante entregue a outras questões.
O caminhar, no entanto, pode ser entendido como uma espécie de esculturação
de trilha, modelada por nossas escolhas, por cada julgamento, por nossos ideais
de vida. As situações da nossa vida, entretecidas pelas redes de relações e
lugares, vem em nossa direção, na medida em que caminhamos. Eu encontro os
desafios, os obstáculos me encontram. Somos recorrentemente convidados a
refazer nossas ferramentas de esculturar essa trilha, chamados a rever nossas
faculdades de julgar, escolher e atualizar nossos ideias, perante essa
concretude dos fenômenos.
Enquanto esculpo meu caminho, o caminhar me modela. Ser no
mundo é saber-se em construção e contemplar a dinâmica dos lugares vindo a ser
aquilo que dele fazemos.
Viver numa grande cidade,
como São Paulo, é uma experiência de desenraizamento constante. A cidade se
refaz muito depressa, mais rápido do que o tempo do despedir-se de lugares e
relações com as quais nos identificamos. Os outros ao nosso redor são tantos,
que não há tempo nem alma suficiente para cultivar interesse por todos, o
bairro se remodela em função de um novo empreendimento ou rearranjo viário e,
quando recobramos a consciência, o que era sólido, se fluidificou no tempo.
Parece não ser possível se enrijecer numa cidade tão dinâmica! Entretanto, a
falta de contato verdadeiro, a desterritorialização passa a representar verdadeiros
interditos de humanização. O cultivo de uma vida interior, de onde floresçam
jardins mais seguros passa a despontar como necessidade de premência crescente.
As nossas paisagens
interiores, cultivadas ao longo dos lugares e dos tempos, podem revelar as
nossas velas e ancoras. Cenários e pessoas que por ela passeiam, quando
revisitados com intencionalidade, podem nos revelar seguros passos para caminhar. No fundo, o caminhar interior, em medidas individuais, é reflexo singular
dos percursos que realizamos no mundo. Revisitar essas paisagens interiores é
uma liberdade que podemos conquistar e da qual podemos haurir forças de
reconhecer-se no vir a ser que nos transforma.
Quando nasceram nossos ideias
de vida? Em que idade e lugar tomamos as nossas decisões mais estruturantes,
como carreira ou família? Quais bosques dessas nossas paisagens interiores
seguem alimentando essas escolhas do passado? Quais atividades seguem
presenteando nossas paisagens interiores? Deste mundo em que sou um construtor ativo,
meus ideais mais caros estão sendo mobilizados e postos em prática ou estão
aguardando bom tempo?
Vivemos viradas de tempos e
renascemos para nosso próprio caminhar.
Em diferentes escalas de intensidade, essas são situações que se repetem nas nossas
vidas. Apesar das turbulências, reconhecer as transições é inevitável. Por
vezes reconhecemos os sintomas dessas viradas, que se enunciam em sinais mais
evidentes e, noutras, somos surpreendidos por rupturas que nos demandam maior
coragem e força.
Vamos sendo enquanto caminhamos. Pelas veredas que
transcorremos, nosso eu vai se tecendo como escultor. Nesses momentos de
virada, um âmbito superior da existência pode apresentar, tal como um esteio
sutil, direções a seguir. Em lampejos de clareza, ou insight, uma escala
superior de nós mesmos se revela.
Estar atento a esses lampejos
pode nos alçar a outros patamares desse caminhar.
O autoconhecimento e o reconhecimento do mundo ambiente se entretecem como
unidade. O eu sou se realiza no contexto que construímos e pelos quais somos
transformados. Eu e o mundo nos interdeterminamos.
O caminhar no mundo, nos afazeres corriqueiros ou nas grandes
realizações, quando preenchidos por intencionalidade consciente e por liberdade
diante de dogmas religiosos, de rígidos trilhos científicos ou de paixões
ideológicas, espiritualiza as pegadas que ficam, passo a passo, marcadas no
mundo. Nos deparar com outras pegadas, tal como obra de arte cocriada entre a
humanidade e os demais elementos da natureza, a que passamos chamar de
paisagem, nos inspira e desperta para os milagres dessa grande lemniscata.
Passado e futuro, paisagens interiores e exteriores, destino e liberdade são
dualidades que se manifestam como unidade fenomênica, quando nos dedicamos a
esse caminho de autoconhecimento.
Caminhar em liberdade,
cultivando as paisagens interiores, espiritualizando os portos em que dedicamos
vida em obras. Aprender a transpor o torpor
do conforto, do enraizamento, da paralisia
dos hábitos, para viver o novo. Não furtar-se, entretanto, de estar pleno
em cada fazer, em cada estar, pela eminencia da transitoriedade do
tempo/espaço, vivendo no sonho do tempo propício, do lugar ideal. O apelo da vida nunca tem fim.
Leandro Evangelista Martins