Em uma aula de 10º ano, uma
aluna, após uma exposição e debate sobre a epopeia Gilgamesh, pergunta se era
verdadeiro o que a obra dizia. Os versos falavam sobre um dilúvio. Sobre um
homem escolhido pelos deuses para construir um imenso barco e colocar em seu
interior um casal de cada espécie animal da terra. Sobre o tempo que o barco
ficou boiando sobre as águas. Sobre a salvação da espécie humana após aportar
novamente em terra firme. A pergunta da aluna possuía também um segundo
propósito: ela conhecia bem a história bíblica de Noé, e por isso, ao receber a
informação de que a epopeia suméria fora escrita antes do relato bíblico, algo
dentro de si se moveu e seu pensamento passou a elaborar a dúvida que ela então
verbalizou na aula. Esse pequeno relato talvez nos mostre de uma maneira mais
límpida o que vem a ser um jovem em seu terceiro setênio.
O que há nisso de tão
sintomático? O que nos é revelado aqui? Pensemos que a exposição do professor
estabeleceu como foco a grande aventura do herói Gilgamesh em busca da
imortalidade. Ele perdera seu grande amigo Enkidu e tomado de tristeza e
angústia pelo sentimento de morte, descobre que apenas um homem na Terra
conquistara o dom de ser imortal. Parte em busca dele. É o que o professor
narra aos alunos, que o acompanham nessa jornada. E ele encontra este homem,
que se chama Utnapishitin. E esse homem conta sua história, de como recebera a
imortalidade. E aí sabemos da história do dilúvio. O professor faz uma pausa.
Todos olham e pensam. Talvez já tenham ouvido essa história. Então questionam o
professor: mas não é a história de...? Elas se parecem, não há dúvida. E qual é
a mais antiga? A revelação causa outro silêncio. O professor nada diz. Espera.
E aí vem outra pergunta. Há outros relatos semelhantes? Sim, há. Em diversas
culturas. Inclusive a ciência fala de uma grande inundação em tempos bastante
remotos. Outro silêncio. E aí vem a pergunta: mas qual desses relatos é o
verdadeiro?
Entremos nesse jovem e
vejamos o que possa estar acontecendo. Ele acompanhava a narrativa que tratava
de uma literatura de um povo arcaico, os sumérios. Ao mesmo tempo que recebia
informações sobre essa cultura, seu modo de existir e de pensar, seus rituais e
costumes, também acompanhava a vida do herói Gilgamesh, um rei severo e arrogante,
injusto com seu povo, que tem o seu poder colocado à prova pelos deuses. O rei
que se achava poderoso é derrotado em uma luta por uma criatura enviada pelos
deuses, Enkidu, que havia sido criado na floresta, entre os animais selvagens.
Diante da derrota, Gilgamesh conhece o que antes jamais praticara, a
misericórdia e a compaixão. Essas virtudes, praticadas por Enkidu, libertam o
rei do que o aprisionava: seus próprios sentimentos. Tornam-se amigos e irmãos.
Essas imagens atravessam o sentir do jovem que as ouve e são redimensionadas em
seu pensamento. Lá se juntam com as informações que tem sobre os sumérios,
sobre a literatura arcaica, sobre as religiões antigas. O que move o herói?
Um dos principais aspectos
que se relacionam ao conhecimento do terceiro setênio é quando abordamos a
questão do nascimento do corpo astral e da formação do juízo. O que, em termos
mais claros, eles podem significar? Temos aqui uma espécie de equação que não
pode ser perdida de vista. O pensar do jovem se desenvolve de forma
extraordinária nessa fase da vida. A capacidade de abstração se intensifica e
ele pode agora transformar fatos em conceitos, relacionar diferentes âmbitos da
realidade em uma síntese conclusiva. Essa capacidade, dentro de um
desenvolvimento normal, permite que a aprendizagem possa seguir caminhos cada
vez mais complexos. No entanto, ao mesmo tempo que ela é maravilhosa, possui
também sérios riscos. Entusiasmado com sua habilidade de pensamento, o jovem
pode se tornar soberbo, arrogante. Ele agora sabe tudo. Principalmente mais que
os adultos. Sua habilidade dialética se torna nociva, porque não consegue
abarcar a empatia, que é a capacidade de compreender o pensamento do outro. Por
outro lado, o pensar pode se tornar frio, excessivamente racional, por uma
ausência de reflexão permeada de sentimentos. Os dois aspectos percebemos
fortemente nos tempos atuais.
Ao retomarmos a aula do
primeiro parágrafo podemos observar que o pensamento da aluna se manifestou em
virtude de alguns aspectos importantes: informação dada dentro de uma sequência
em que os elementos façam sentido; possibilidade de exercer empatia ao perceber
o espaço proporcionado para as reflexões sobre a personagem e suas ações;
prática da pergunta que advém de um real desejo de compreender a oferta do
mundo. A esses três aspectos, um quarto deve ser acrescentado, talvez o mais
importante: o pensamento elaborado é construção do próprio aluno. O professor
pavimenta o caminho da reflexão, mas não dá o destino. Esse destino quem
estabelece é o aluno, porque é nesse plano que seu corpo astral tem a
oportunidade de encontro com seu eu futuro. Aqui forma-se o caráter num sentido
muito mais amplo que o de comportar-se socialmente. Pelo pensar livre, porém
permeado de empatia, o aluno permite-se criar para si as questões que fundarão
seu caminho de vida. O terceiro setênio é a construção do porto que leva ao
futuro.
Sidnei
Xavier dos Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário