quarta-feira, 17 de outubro de 2018

TERCEIRO SETÊNIO E AS BASES PARA O FUTURO


Em uma aula de 10º ano, uma aluna, após uma exposição e debate sobre a epopeia Gilgamesh, pergunta se era verdadeiro o que a obra dizia. Os versos falavam sobre um dilúvio. Sobre um homem escolhido pelos deuses para construir um imenso barco e colocar em seu interior um casal de cada espécie animal da terra. Sobre o tempo que o barco ficou boiando sobre as águas. Sobre a salvação da espécie humana após aportar novamente em terra firme. A pergunta da aluna possuía também um segundo propósito: ela conhecia bem a história bíblica de Noé, e por isso, ao receber a informação de que a epopeia suméria fora escrita antes do relato bíblico, algo dentro de si se moveu e seu pensamento passou a elaborar a dúvida que ela então verbalizou na aula. Esse pequeno relato talvez nos mostre de uma maneira mais límpida o que vem a ser um jovem em seu terceiro setênio.

O que há nisso de tão sintomático? O que nos é revelado aqui? Pensemos que a exposição do professor estabeleceu como foco a grande aventura do herói Gilgamesh em busca da imortalidade. Ele perdera seu grande amigo Enkidu e tomado de tristeza e angústia pelo sentimento de morte, descobre que apenas um homem na Terra conquistara o dom de ser imortal. Parte em busca dele. É o que o professor narra aos alunos, que o acompanham nessa jornada. E ele encontra este homem, que se chama Utnapishitin. E esse homem conta sua história, de como recebera a imortalidade. E aí sabemos da história do dilúvio. O professor faz uma pausa. Todos olham e pensam. Talvez já tenham ouvido essa história. Então questionam o professor: mas não é a história de...? Elas se parecem, não há dúvida. E qual é a mais antiga? A revelação causa outro silêncio. O professor nada diz. Espera. E aí vem outra pergunta. Há outros relatos semelhantes? Sim, há. Em diversas culturas. Inclusive a ciência fala de uma grande inundação em tempos bastante remotos. Outro silêncio. E aí vem a pergunta: mas qual desses relatos é o verdadeiro?

Entremos nesse jovem e vejamos o que possa estar acontecendo. Ele acompanhava a narrativa que tratava de uma literatura de um povo arcaico, os sumérios. Ao mesmo tempo que recebia informações sobre essa cultura, seu modo de existir e de pensar, seus rituais e costumes, também acompanhava a vida do herói Gilgamesh, um rei severo e arrogante, injusto com seu povo, que tem o seu poder colocado à prova pelos deuses. O rei que se achava poderoso é derrotado em uma luta por uma criatura enviada pelos deuses, Enkidu, que havia sido criado na floresta, entre os animais selvagens. Diante da derrota, Gilgamesh conhece o que antes jamais praticara, a misericórdia e a compaixão. Essas virtudes, praticadas por Enkidu, libertam o rei do que o aprisionava: seus próprios sentimentos. Tornam-se amigos e irmãos. Essas imagens atravessam o sentir do jovem que as ouve e são redimensionadas em seu pensamento. Lá se juntam com as informações que tem sobre os sumérios, sobre a literatura arcaica, sobre as religiões antigas. O que move o herói?

Um dos principais aspectos que se relacionam ao conhecimento do terceiro setênio é quando abordamos a questão do nascimento do corpo astral e da formação do juízo. O que, em termos mais claros, eles podem significar? Temos aqui uma espécie de equação que não pode ser perdida de vista. O pensar do jovem se desenvolve de forma extraordinária nessa fase da vida. A capacidade de abstração se intensifica e ele pode agora transformar fatos em conceitos, relacionar diferentes âmbitos da realidade em uma síntese conclusiva. Essa capacidade, dentro de um desenvolvimento normal, permite que a aprendizagem possa seguir caminhos cada vez mais complexos. No entanto, ao mesmo tempo que ela é maravilhosa, possui também sérios riscos. Entusiasmado com sua habilidade de pensamento, o jovem pode se tornar soberbo, arrogante. Ele agora sabe tudo. Principalmente mais que os adultos. Sua habilidade dialética se torna nociva, porque não consegue abarcar a empatia, que é a capacidade de compreender o pensamento do outro. Por outro lado, o pensar pode se tornar frio, excessivamente racional, por uma ausência de reflexão permeada de sentimentos. Os dois aspectos percebemos fortemente nos tempos atuais.

Ao retomarmos a aula do primeiro parágrafo podemos observar que o pensamento da aluna se manifestou em virtude de alguns aspectos importantes: informação dada dentro de uma sequência em que os elementos façam sentido; possibilidade de exercer empatia ao perceber o espaço proporcionado para as reflexões sobre a personagem e suas ações; prática da pergunta que advém de um real desejo de compreender a oferta do mundo. A esses três aspectos, um quarto deve ser acrescentado, talvez o mais importante: o pensamento elaborado é construção do próprio aluno. O professor pavimenta o caminho da reflexão, mas não dá o destino. Esse destino quem estabelece é o aluno, porque é nesse plano que seu corpo astral tem a oportunidade de encontro com seu eu futuro. Aqui forma-se o caráter num sentido muito mais amplo que o de comportar-se socialmente. Pelo pensar livre, porém permeado de empatia, o aluno permite-se criar para si as questões que fundarão seu caminho de vida. O terceiro setênio é a construção do porto que leva ao futuro.

Sidnei Xavier dos Santos

Professor de Literatura da Escola Waldorf Francisco de Assis

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