Há dois filmes que tratam do assunto “ser e ter” de maneira magistral. Meu tio (Mon Oncle, de Jacques Tati, 1958) e A última gargalhada (Der letzte mann de F.W. Murnau, 1924).
Na comédia francesa, Monsieur Hulot
convive com seu sobrinho que vive em uma casa futurista, cheia de artefatos
tecnológicos. Ali, nada deve sair do lugar, tudo é regrado e monótono. Em sua
casa, as condições externas da limpeza, tecnologia e ordem imperam e a criança
não pode ser como é. A criança só sorri quando está com o tio ou em sua
vizinhança. O tio mora na periferia e tem uma vida cheia de encontros humanos e
calorosos. Nada parece artificial como na vida sofisticada de sua irmã. No
mundo do tio, a infância tem seu lugar e o menino pode se sujar, conviver com
outros meninos e ser criança.
No drama alemão, o porteiro de um
sofisticado hotel de Berlim ostenta seu cargo por meio de seu casaco cheio de
galardões, como o de um general. No entanto, ele já mostra sinais de velhice e
acaba sendo substituído. Ele agora deve ocupar o cargo de servente no banheiro,
com um simples jaleco branco. Bem no dia do casamento de sua filha, seu casaco/
identidade é retirado dele, dando início a uma série de acontecimentos.
Em ambos, condições externas
delimitam e tentam dar forma à essência humana. Nos dois filmes os objetos
físicos, como extensões do corpo físico do ser humano, ganham enorme
importância e fica muito claro quando os personagens podem ser plenos em suas
possibilidades e quando são submetidos pelas coisas.
De acordo com a visão de mundo
antroposófica, o ser humano pode ser visto como possuidor de quatro entidades,
o corpo físico visível e palpável; o corpo etérico, ou corpo vital; o corpo
astral; das sensações e o eu humano, o centro espiritual de identidade.
No filme de Murnau, fica evidente que
a entidade física do porteiro, explicitado por seu casaco de galardões toma as
vezes de centro espiritual e ele confunde sua aparência com sua identidade. E
quando sua função e uniforme são retirados à força, há uma crise de identidade
bastante grave. Ele aparenta ser forte e indestrutível dentro do casaco, mas
quando o perde, mostra seu corpo físico já debilitado e sem vitalidade.
Em A última gargalhada, as relações
humanas podem ser ternas e calorosas, mas também podem ser violentas e cruéis.
Há uma intensidade de sentimentos e sensações que se colocam visualmente pela
excelente atuação de Emil Jannings como o velho porteiro. Sua verdadeira
identidade vai se revelando aos poucos, bem como as reviravoltas de seu
destino.
No filme de Tati, a entidade física
aparece na figura da casa futurista e tecnológica. Há um excesso de forma, que
tolhe os movimentos da criança, cerceia sua espontaneidade e a deixa infeliz.
Ali dentro o menino parece doente e triste, sem nenhuma vitalidade, entediado.
Seu corpo pode se movimentar somente quando sai de casa e vai visitar a
periferia decadente, onde mora o tio. Ali, o menino pode encontrar outras
crianças, sujar-se, rir, comer besteiras, pregar pequenas peças e se divertir.
Toda essa riqueza de vivências trazem vitalidade e alegria ao menino. Ali, sua
natureza espiritual pode ser plena.
Em ambos filmes, fica muito presente
a periferia das cidades. Ainda que idealizada e colocada como um lugar ainda
com condições mínimas de se viver, fora do centro das cidades é que aparecem as
relações humanas mais solidárias. E mesmo que as nossas periferias não sejam
como as retratadas nesses filmes, ainda assim há algo nelas que guarda a
dignidade humana. Mesmo nos lugares mais brutos e cruéis como as periferias
urbanas brasileiras, ainda assim o ser humano consegue encontrar seu eu.
“(…) Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os
negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma
insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no
mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
ódio.”
A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade
Daniel Kulaif
professor de classe no Colégio Waldorf Micael de SP
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