quarta-feira, 6 de março de 2019

A essência humana e as coisas


 Há dois filmes que tratam do assunto “ser e ter” de maneira magistral. Meu tio (Mon Oncle, de Jacques Tati, 1958) e A última gargalhada (Der letzte mann de F.W. Murnau, 1924). 
Na comédia francesa, Monsieur Hulot convive com seu sobrinho que vive em uma casa futurista, cheia de artefatos tecnológicos. Ali, nada deve sair do lugar, tudo é regrado e monótono. Em sua casa, as condições externas da limpeza, tecnologia e ordem imperam e a criança não pode ser como é. A criança só sorri quando está com o tio ou em sua vizinhança. O tio mora na periferia e tem uma vida cheia de encontros humanos e calorosos. Nada parece artificial como na vida sofisticada de sua irmã. No mundo do tio, a infância tem seu lugar e o menino pode se sujar, conviver com outros meninos e ser criança. 

No drama alemão, o porteiro de um sofisticado hotel de Berlim ostenta seu cargo por meio de seu casaco cheio de galardões, como o de um general. No entanto, ele já mostra sinais de velhice e acaba sendo substituído. Ele agora deve ocupar o cargo de servente no banheiro, com um simples jaleco branco. Bem no dia do casamento de sua filha, seu casaco/ identidade é retirado dele, dando início a uma série de acontecimentos.
Em ambos, condições externas delimitam e tentam dar forma à essência humana. Nos dois filmes os objetos físicos, como extensões do corpo físico do ser humano, ganham enorme importância e fica muito claro quando os personagens podem ser plenos em suas possibilidades e quando são submetidos pelas coisas.
De acordo com a visão de mundo antroposófica, o ser humano pode ser visto como possuidor de quatro entidades, o corpo físico visível e palpável; o corpo etérico, ou corpo vital; o corpo astral; das sensações e o eu humano, o centro espiritual de identidade.
No filme de Murnau, fica evidente que a entidade física do porteiro, explicitado por seu casaco de galardões toma as vezes de centro espiritual e ele confunde sua aparência com sua identidade. E quando sua função e uniforme são retirados à força, há uma crise de identidade bastante grave. Ele aparenta ser forte e indestrutível dentro do casaco, mas quando o perde, mostra seu corpo físico já debilitado e sem vitalidade.
Em A última gargalhada, as relações humanas podem ser ternas e calorosas, mas também podem ser violentas e cruéis. Há uma intensidade de sentimentos e sensações que se colocam visualmente pela excelente atuação de Emil Jannings como o velho porteiro. Sua verdadeira identidade vai se revelando aos poucos, bem como as reviravoltas de seu destino.
No filme de Tati, a entidade física aparece na figura da casa futurista e tecnológica. Há um excesso de forma, que tolhe os movimentos da criança, cerceia sua espontaneidade e a deixa infeliz. Ali dentro o menino parece doente e triste, sem nenhuma vitalidade, entediado. Seu corpo pode se movimentar somente quando sai de casa e vai visitar a periferia decadente, onde mora o tio. Ali, o menino pode encontrar outras crianças, sujar-se, rir, comer besteiras, pregar pequenas peças e se divertir. Toda essa riqueza de vivências trazem vitalidade e alegria ao menino. Ali, sua natureza espiritual pode ser plena.
Em ambos filmes, fica muito presente a periferia das cidades. Ainda que idealizada e colocada como um lugar ainda com condições mínimas de se viver, fora do centro das cidades é que aparecem as relações humanas mais solidárias. E mesmo que as nossas periferias não sejam como as retratadas nesses filmes, ainda assim há algo nelas que guarda a dignidade humana. Mesmo nos lugares mais brutos e cruéis como as periferias urbanas brasileiras, ainda assim o ser humano consegue encontrar seu eu.

“(…) Uma flor nasceu na rua!Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.Uma flor ainda desbotadailude a polícia, rompe o asfalto.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tardee lentamente passo a mão nessa forma insegura.Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade
Daniel Kulaif
professor de classe no Colégio Waldorf Micael de SP

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