quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O esconderijo do amor


Escrever sobre o amor em tempos de cólera é uma tarefa que o adjetivo simples não pode ser usado para descrever. Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Tom Jobim jamais teriam imaginado que o tema de seus poemas, livros e letras seria tão sufocado em tempos modernos.

Sentada no deck do Centro Paulus, cercada pelo resistente verde da Mata Atlântica, no extremo sul da cidade de São Paulo, o vento sopra e uma leve chuva amarela cai sobre mim. São as flores da sibipiruna que chamam a minha atenção, desviando o meu pensamento do assunto que me permeia neste momento: criar um texto.

Diante de tanta aridez no uso das palavras escritas ou faladas, comecei a procurar onde teria se escondido essa palavra formada apenas com quatro letras, profunda e genuína em seu significado e expressão, mas tão maltratada nos últimos tempos.

Comecei fazendo uma pequena retrospectiva biográfica, passeando pelos meus setênios, relembrando encontros e vivências. Quando foi que reconheci este sentimento em mim pela primeira vez? Diversos momentos foram relembrados. O calor da casa paterna, a primeira professora, as paixonites de adolescência, as companheiras de quatro patas, as amizades que conquistei, os livros que me fizeram sonhar. Todas essas lembranças aqueceram o meu coração, reconheci o amor em cada uma delas, mas duas lembranças me fizeram sorrir de uma maneira especial e aqueceram a minha alma. Os nascimentos de meus filhos, Camilla e Tiago, foram para mim os marcos mais importantes em relação ao amor. Porém, é óbvio demais escrever sobre o amor materno, pensei, nem todas as pessoas se identificam com esse tipo de amor por terem escolhas de vida diferentes, é melhor ampliar meu campo de pesquisa e buscar algo mais universal, disse a mim mesma.
 Abri o computador, digitei as quatro letras e milhares de opções surgiram à minha frente. Para ser mais exata, foram 1.030.000.000 de opções. Surpreendente, mas qual a qualidade desses resultados?

 As primeiras opções estavam relacionadas à casos amorosos de famosos do momento. Nosso querido Vinícius de Moraes já havia dito que seja eterno enquanto dure, mas preferi deixar esses amores fugazes de lado e busquei mais emoção e durabilidade.  É fácil perder a cabeça e o foco na busca pelo amor na profusão de páginas que se apresentam sobre o assunto. Letras de música, títulos de filmes, igrejas, ofertas de produtos, palavras de ordem (mais amor por favor), trabalhos de mestrado, páginas de encontros virtuais, etc. Em cada uma das páginas visitadas lê-se a palavra, mas é difícil reconhecer o sentimento. Ele não está lá. Resolvi dar um passeio pelas músicas. É fogo que arde sem se ver, que mexe com minha cabeça e me deixa assim e que, quando falta, é avião sem asa, fogueira sem brasa, futebol sem bola ou Piu-Piu sem Frajola. Cada melodia uma emoção, cada poesia uma forma delicada de expressar com palavras aquilo que se sente no coração. 


Continuei pesquisando e senti um frio. Comecei a ter a sensação de que o sentimento estava desgastado. Eu estava buscando lógica para escrever sobre um sentimento? Algumas páginas apresentaram o amor como moeda de troca e alguns estudos buscam comprovar que este sentimento é uma construção social ao longo da história a serviço das posses, do poder, do controle, etc. Seco demais, pensei, nem tudo tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado como cantava Raul Seixas.
Parei de pesquisar e comecei a observar.

Eliana acaba de se tornar avó. Com um sorriso que aquece os que estão ao seu redor, exibe numa tela de celular, as bochechas rosadas de seu neto. Vanessa, imersa num curso de autoconhecimento, envia uma mensagem de apoio ao seu filho que irá participar de uma competição de judô. Um grupo de pessoas se organiza pela internet para um mutirão de limpeza do recém plantado largo das Araucárias, nas proximidades do Largo da Batata. Tiago atravessa a cidade por duas horas para abraçar e beijar sua namorada. Camilla está em uma foto envolvida pelo terno olhar de Raphael. Luciana sai de seu apartamento e oferece um prato de comida para o senhor que dorme na rua em frente ao seu prédio. Deborah trança os cabelos de seu amigo e decora com uma pequena flor. Um grupo de formação em Aconselhamento Biográfico é acometido por uma virose e o cuidado de cada um, consigo e com os demais, cria um ambiente de pura expressão amorosa. O amor é múltiplo na forma de expressão, pode ser, solidariedade, companheirismo, vínculo, afeto, compaixão ou um simples abraço.

Alguém em algum lugar recebe uma chuva de flores amarelas e reconhece que, mesmo em tempos de cólera, o amor não se esconde, está em todos os lugares, vivo, pulsante e pode ser sentido em cada pequeno gesto de atenção, carinho e zelo que nos rondam a todo o instante.

Sylvia Beatrix Pereira
Aconselhadora Biográfica


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