quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A gênese do amor

Falar sobre o amor não é tarefa fácil, até porque é um sentimento que efetivamente não sei se já nasceu dentro de mim. O que é o amor? Como buscar um significado para esta palavra em princípio tão abstrata. Para tentar chegar à gênese do amor fui buscar amparo nos poetas, nos filósofos, nas religiões, sociólogos sem deixar de me lembrar das pessoas de natureza humilde, distantes da academia, que encontrei ao longo da minha vida e que me comoveram com a profundidade de seus conceitos. Nesse contexto posso me arriscar a dizer que para mim, o amor é um sentimento que, mesmo sem saber definir, sei o que é. Mas como explicar isso? “O amor não se define, o amor se vive”, dizem alguns. Sim, pode ser. Mas como vivo algo que não sei o que é? E me pergunto de onde ele vem? Onde ele nasce se vive em nós? Como podemos ter a percepção do que é o amor se tantas são as definições? Ou se vivemos esse sentimento, como não conseguimos defini-lo com precisão? Por que em cada época da humanidade o “amor” pode ser conceituado de forma que atenda às percepções daquela sociedade, se é algo que está intrinsecamente em nós?

Socorrendo-me do poeta Carlos Drummond de Andrade, aproveitando a data do seu natalício (31/10), trago os versos do poema As Sem-Razões do Amor:” Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou de mais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.”
Inspirada por esse poema, e especialmente nos versos “o amor é estado de graça ... amor é dado de graça...” fui buscar na Antroposofia, o pensamento de Rudolf Steiner, o que por si só não é um caminho muito tranquilo. Como vem fazendo desde o meu primeiro contato com seus textos, Steiner tem descontruído muitas das minhas crenças sobre os poderes de Deus. Diz Steiner, in O amor e seu Significado no Mundo: “Deus é amor puro, amor sincero e não sabedoria e poder supremos”. Sendo Deus o Amor, este impulso flui para a humanidade pronto, como uma dádiva e nós, seres humanos, podemos capturar esse impulso de forma gradativa. Assim, amor é o fundamento de tudo o que vive, por essa razão sinto que o Amor é, ainda que não consiga traduzir em palavras o seu real significado. Amor é, portanto, esse impulso que se encontra à disposição do ser humano para ser experimentado, vivenciado quando este desejar caminhar as trilhas do aperfeiçoamento espiritual.

Um outro aspecto do amor, na visão do pai da Antroposofia que reverberou fortemente em mim é que o amor “não desperta esperanças para o futuro, e sim liquida as dívidas do passado”, e só quem compreende o amor dessa maneira é um cristão, ou seja, compreende o que significou o Mistério do Gólgota, que é um assunto dos deuses, que estes nos permitiram assistir. Nossa, a partir daqui meu mundo se colocou de cabeça para baixo! E prossegue Steiner: “Este é o único ato terreno totalmente suprassensível; portanto, não se deve estranhar se os que não creem no suprassensível não creem de forma alguma no ato do Cristo”. Foi nesse momento, quando se abre esse portal, permitindo ao homem assistir a um ato divino que chegou o amor ao mundo, através desse impulso crístico. A Antroposofia traz para o conhecimento humano a jornada do homem em sua chegada na Terra, isto é, como ser espiritual, foi adensando sua forma física, até que em determinado momento os deuses que participavam dessa jornada, num encontro com Lúcifer, entregaram a este a sua onipotência. Esse ato possibilitaria ao homem ser livre. Nesse encontro, nesse momento o homem entra na matéria mais que estava programado, distanciando-se dos deuses que estavam em ascensão. Por esta razão, num conselho de deuses, Cristo se disponibiliza a recuperar os homens. Resumidamente este, para quem acredita minimamente no suprassensível, no metafísico, é o maior ato de Amor. E por esta razão, no meu humilde entender, podemos de todas as formas tentar buscar o significado da palavra amor, e só conseguiremos tangenciá-lo se percebermos que “surge o amor por algo que está dentro de nós mesmos”.

Finalizando, obviamente com Drummond, deixo novas perguntas:
   “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?   Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?   Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.” (Amar)

Tereza Racy
É jornalista, mãe de ex aluna waldorf  e membro do Conselho deliberativo da Escola Waldorf Francisco de Assis 

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